Relatório Ponte a Ponte – Os 60 primeiros dias de Covid-19 no Brasil – uma análise macro do campo de impacto social no país

SUMÁRIO EXECUTIVO
Este relatório tem como objetivo gerar inteligência para o campo de investimento social, responsabilidade social, filantropia e sustentabilidade a partir da sistematização dos últimos 60 dias em 60 fatos, reflexões, recomendações e tendências no cenário da Covid-19 no Brasil.
Utilizamos como ponto de partida a análise do Mapeamento de Iniciativas contra a Covid- 19, iniciativa voluntária da ponteAponte que tem nos permitido acompanhar, desde 20 de março, a evolução de centenas de ações solidárias e de arrecadação por todo o país, de modo a ter uma visão macro e sistêmica – embora não exaustiva. Também foi realizada uma consulta a especialistas e parceiros.
O relatório completo, que ainda agrega dezenas de exemplos e referências mapeadas, pode ser acessado em https://drive.google.com/file/d/14eHc2LhhoGbAaZaf46Aa5fe3iGbeQUzl/view.
UMA BREVE ANÁLISE DO CAMPO NO PERÍODO
Houve no primeiro momento um crescimento veloz de iniciativas de filantropos e investidores sociais para arrecadar dinheiro e artigos/produtos (alimentos, kits de higiene etc.) para populações mais vulneráveis, seguido de uma desaceleração para maior concentração e coordenação de esforços, ao passo que as campanhas comunitárias seguiram crescendo em quantidade e abrangência geográfica entre a segunda quinzena de março e a primeira de abril.
Contudo, ainda vemos bastante espaço para diversos investidores sociais privados (institutos e fundações) atuarem com maior ênfase, ações e recursos na que deve se consolidar como fase de pico de disseminação do vírus no país.
Para esse grupo, reiteramos a importância de atuar ao lado das comunidades e OSCs com as quais já trabalha, bem como em parceria com outros atores desenvolvedores do campo.
No caso específico de empresas, a atuação variou entre geração de conhecimento, apoio em infraestrutura, operações e logística (por exemplo, produção de álcool gel) e doações. Diversas marcas – algumas antes pouco atuantes no campo – passaram a promover ações de investimento social, de modo que grande parte dos quase R$ 4 bilhões arrecadados segundo o Monitor de Doações tem origem em doações corporativas. Vale acompanharmos esses movimentos, inclusive para avaliar se houve entrada e consolidação de novos players entre investidores sociais – ou se se tratou apenas de iniciativas efêmeras – com ou sem objetivos mercadológicos.
Entre os intermediários e desenvolvedores do campo, também foi possível notar seu papel de liderança nas articulações entre sociedade civil, Estado e iniciativa privada nestes 60 dias, como é o caso de entidades e movimentos como ABCR (Associação Brasileira de Captação de Recursos), Movimento pela Cultura de Doação, Pacto pela Democracia e Rede Brasil do Pacto Global da ONU. Ademais, várias plataformas digitais foram lançadas (de arrecadação coletiva a georreferenciamento de casos e informações técnicas), com bastante sobreposição – algumas já em desuso –, o que indica a possibilidade de maior coordenação de esforços nesse sentido, no difícil equilíbrio entre ser protagonista e ser colaborativo.
Algumas reflexões ao se analisarem todas essas ações apontam para a necessidade de maior transparência e articulação, equilibrando agilidade e qualidade.
Muitos dos anúncios de grandes empresas, por exemplo, ainda não foram seguidos de informações concretas acerca de quem receberá os apoios ofertados e de que forma e quando eles acontecerão.
Outro ponto é planejar a distribuição geográfica das ações, ainda concentradas em São Paulo e no Rio de Janeiro (quase metade das iniciativas mapeadas pela ponteAponte), bem como dentro dos próprios municípios, tendo cuidado com a já identificada concentração dos recursos em determinadas regiões, organizações e/ou lideranças (em parte justificada pelas parcerias preexistentes e de confiança e a presença de organizações consolidadas, entre outros fatores). Um bom parâmetro é priorizar bairros e distritos onde há maior número de casos de infecção e fatalidades. A nosso ver, fato é que é hora de o investidor social se arriscar mais e distribuir melhor suas ações para incluir e estimular novos atores que estão emergindo neste cenário com propostas mais próximas da sua realidade socioeconômica.
CAMPANHAS – ANÁLISES DE OPORTUNIDADES E DESAFIOS
As campanhas de arrecadação espelharam em grande parte a sequência temporal apresentada antes. A partir da segunda quinzena de março – quando foi confirmada a primeira morte no país devido à Covid-19 -, surgiu a primeira onda com centenas de campanhas pulverizadas de early adopters, sejam de investimento social, sejam comunitárias, de OSCs, coletivos e lideranças periféricas. Quase simultaneamente, entraram em campo os crowdfundings e, pouco depois, os matchfundings, bem como iniciativas de grandes empresas. Mais para o fim de março e início de abril, emergiram mais campanhas conjuntas, como o Sociedade contra o Corona. Atualmente, as campanhas comunitárias localizadas crescem em maior ritmo em todo o Brasil.
Alguns binômios ajudam a especificar a natureza dos diferentes tipos de campanha: as lideradas por filantropos e financiadores (investimento social privado) e as lideradas por comunidades e OSCs (para além das ligadas ao Poder Público); as de arrecadação em dinheiro e as de coleta de bens, produtos e serviços (mais comuns nas comunitárias, mas não exclusivamente); as de arrecadação e as de doação (oferta); as individuais e as coletivas (e algumas multissetoriais); as de pessoa física e as de pessoa jurídica; as locais (ou regionais) e as nacionais (e algumas internacionais); por fim, as de assistência social (distribuição de alimentos, kits de higiene, renda emergencial etc.) e as de saúde (foco em hospitais e equipamentos de saúde).
A despeito de existirem diversas campanhas “tradicionais”, é notável como ganhou destaque neste período o crowdfunding, havendo na segunda quinzena de março até início de abril uma velocidade maior no volume de arrecadações e, por conseguinte, de metas batidas em relativo curto espaço de tempo. Assim como nas campanhas online anteriores à Covid-19, segue sendo primordial que o proponente da arrecadação tenha uma forte rede e mobilize as doações para bater a meta. A sensibilização da população ajuda, mas é a rede de cada um que conta mais. Uma evidência disso é que, em nosso mapeamento, verificamos que as campanhas mais bem-sucedidas em termos de arrecadação média da meta são as de investimento social privado (65%), que envolvem instituições com fortes redes de contato, ao passo que as campanhas comunitárias ou individuais acabam apresentando desempenho bem inferior (26%) – um espelho da desigualdade de acessos que permeiam o campo – e o Brasil como um todo.
Ainda sobre essas arrecadações coletivas, cabe ressaltar que o instrumento de matchfunding vem sendo aplicado com diferentes graus de sucesso no Brasil – a ponteAponte, por exemplo, articulou voluntariamente uma das campanhas pioneiras no Brasil em julho de 2013, na então plataforma Juntos.com.vc. Desde então, temos feito uma recomendação: essa ferramenta oferece benefícios em vários níveis (aumento do valor efetivamente doado e estímulo à cultura de doação), porém pode trazer uma externalidade negativa quando quem irá receber as doações não tem uma rede forte o suficiente para angariar a meta mínima ou a de se sentir prejudicado uma vez que, ao atingir o teto, não terá mais contrapartida da organização proponente. Já vimos casos de desgaste e frustração, sobretudo entre lideranças periféricas que tiveram de abandonar o “corre” e seu foco para completar a meta (até com recursos próprios). É preciso verificar quando é o caso de haver meta mínima (tudo ou nada), quem é o público prioritário da ação de comunicação (quem tem mais condições de doar, ainda que todos em alguma medida possam participar) e qual a força das redes de contatos dos envolvidos (para além das lideranças, coletivos e OSCs que receberão os recursos em última instância, envolvendo plataforma, patrocinadores e outros parceiros).
De forma geral, a qualidade de comunicação das campanhas tem variado muito – e podem ser um elemento central para o sucesso ou não da iniciativa. Seja pelo pouco tempo de estruturação das iniciativas, seja por falta de conhecimento, muitas das campanhas por nós mapeadas apresentam déficits relevantes de transparência e accountability, sejam elas comunitárias, sejam do investimento social privado.
Praticamente metade, por exemplo, não menciona os valores arrecadados, ainda que parcialmente.
Recomendamos a inserção de informações mínimas, por exemplo, para que ela foi criada (objetivo); para quem ela se destina (público diretamente impactado) e quem é ou são os realizadores e parceiros; onde ela será realizada (em quais localidades – bairros, municípios, Estados, regiões etc.) e de onde ela parte (qual é ou quais são as sedes ou filiais envolvidas dos organizadores); quanto se quer arrecadar e para quantas pessoas, comunidades e organizações; quando a campanha foi lançada e até quando ela ficará aberta – evite manter algo recorrente, que tende ao esquecimento; e como as ações posteriores serão efetivadas (planejamento, logística de entrega etc.).
Em relação aos temas das campanhas, se no curtíssimo prazo o foco das campanhas foram assistência social (distribuição de cestas básicas, alimentos e kits de higiene e limpeza, ganhando força as máscaras de proteção para a população em geral), é notável que nas últimas semanas começam a sobressair iniciativas de geração de renda, inclusão produtiva e empreendedorismo. Em todos os casos, ao longo dos 60 dias mantiveram-se simultaneamente as arrecadações para a saúde (de máscaras a respiradores e outros suprimentos médico-hospitalares), em geral multimilionárias e com um tíquete médio bem superior às demais campanhas (dados os custos relativos ao setor e de certa forma também refletindo o que já ocorre em termos de mobilização de recursos no Brasil, com grandes montantes arrecadados para hospitais, sobretudo os infantis no cenário pré-Covid-19). Embora mais capilarizada e pervasiva, assistência social não foi a temática que mais angariou recursos, compondo 24% do total arrecadado, enquanto saúde, tema que mais aportou recursos financeiros, arrecadou 76% do total.
Como se pode depreender, as campanhas anti-Covid vêm refletindo alguns dos padrões encontrados nas pesquisas mais relevantes do campo, como BISC (Benchmarking do Investimento Social Corporativo), Censo GIFE e Giving Report: altos valores destinados para a área de saúde, que tradicionalmente sensibiliza mais o doador brasileiro, concentração de recursos na região Sudeste, com destaque para São Paulo e Rio, tíquete médio alavancado por algumas poucas instituições privadas e investimento prioritário no entorno das empresas/indústrias, entre outros aspectos.
Além da continuidade de ações emergenciais de curtíssimo e curto prazo, ainda há muito espaço para mais iniciativas que visem inovações sociais para os próximos meses e, sobretudo, apoios estruturantes às organizações da sociedade civil, coletivos periféricos e movimentos sociais, que serão fortemente impactadas no médio e no longo prazos, para além do cenário da Covid-19.
ALGUMAS LACUNAS RELEVANTES
Emergiu em nosso mapeamento uma quantidade notável de campanhas para públicos específicos dos mais variados, por exemplo, pessoas trans, populações indígenas, catadores, domésticas, mães, imigrantes, moradores de cortiços e artistas periféricos.
Entretanto, em vista da realidade da desigualdade social brasileira, o cobertor ainda é bastante curto, e serão essenciais nas próximas semanas (e meses) novas ações com foco nesses públicos.
Um exemplo são os catadores, muitas vezes confundidos erroneamente com população em situação de rua, e que tiveram suas rendas diminuídas ou zeradas neste período. Outro caso é o da área cultural. A maioria dos artistas informais ou periféricos segue com grandes dificuldades de se manter economicamente (por exemplo, alguns ficam à margem de rendas emergenciais por terem recebido cachês acima do limite previsto por essas ações, ainda que não tenham reservas para situações como a atual). Em abril, por outro lado, explodiu o número de lives de artistas nacionais e internacionais, alguns dos quais disseminando informações e solicitando doações para organizações parceiras. Acreditamos que a migração para o digital em alguma medida se manterá e terá impactos no campo como um todo – um exemplo disso é que o Festival ABCR, em junho, será totalmente on-line pela primeira vez.
Também são escassas as campanhas de captação de recursos com incentivos fiscais – identificamos em nosso mapeamento apenas a Ação Emergencial Fundo Idoso, articulada pela Nexo, via Fundo do Idoso para construir novos leitos de UTI e enfermagem em BH. Por ser uma doação emergencial, os recursos serão liberados em tempo recorde para esses fins (prazo estimado de uma semana).
Em nosso mapeamento, vimos ainda muito poucas iniciativas que estejam fomentando produção de conteúdo (jornalístico, independente, periférico etc.) e que ajude a combater fake news, valorize o papel de dados, de estatística, da ciência etc. para além das campanhas realizadas pelos próprios impactados (por exemplo, campanhas de apoio ao jornalismo periférico). Isso parece ainda não ser uma agenda relevante para o campo social, infelizmente.
QUALIFICAÇÃO DO INVESTIMENTO SOCIAL
Enxergamos o momento como uma oportunidade para qualificar o investimento social e o setor como um todo, gerando reflexões e ações concretas relevantes para o campo. Por exemplo, não vimos ainda uma discussão neste cenário em relação à cobrança de overhead e outras taxas para arrecadação das plataformas online e gestão de fundos. Defendemos a importância da sustentabilidade financeira desses agentes, essenciais para o campo, porém consideramos relevante uma análise levando em conta quanto das doações está sendo efetivamente direcionada para a atividade-fim em relação ao cobrado pelas plataformas – algumas estão viabilizando as operações apenas cobrindo despesas, por exemplo. Deixamos aqui um convite para reflexão sobre os modelos de negócio dessas iniciativas. Outro ponto é qual é o nível de engajamento real nessas ações de combate à Covid-19 e qual a sua contrapartida.
Por outro lado, sobretudo nas campanhas comunitárias, temos visto pessoas físicas ou empreendedores individuais (antes MEI) recebendo recursos em suas contas, o que, além da questão da transparência (mas que muitas vezes reflete apenas a falta de uma infraestrutura institucional), pode acarretar problemas fiscais aos recebedores das doações futuramente. Além disso, entre os que recebem as doações, é provável que poucos conheçam o ITCMD (imposto de transmissão causa mortis e doação). As boas práticas (inclusive do aspecto jurídico-fiscal) sobre como realizar uma campanha de arrecadação precisam ser mais bem disseminadas ao público em geral.
Outro tema com relevantes transformações que temos analisado são as chamadas de seleção de projetos via editais e desafios. Como um instrumento de repasse de recursos oriundo do setor público e tradicionalmente mais burocrático, os editais começaram a emergir em maior quantidade sobretudo a partir de abril. E a maioria com novidades impactantes: processo simplificado, cronograma reduzido (com período de inscrições em menos de uma semana), natureza coletiva e multissetorial e público prioritário mais abrangente, com foco nas inovações em si, e não na tipologia jurídica.
Como uma das especialidades da ponteAponte, acreditamos que algumas dessas experimentações em chamadas de seleção de projetos vieram para ficar, após os devidos ajustes. Muitas dessas “novidades” são defendidas por nós há alguns anos, como a maior abrangência do público prioritário, o processo simplificado (em lugar de burocrático, em que a confiança da parceria perde lugar para o controle ineficiente) e as parcerias multissetoriais (em vez de verticais e isoladas), incluindo atores com legitimidade e lugar de fala, trazendo inteligência e impacto coletivos. Trata-se de uma oportunidade única para o investidor social encontrar um melhor e mais eficiente equilíbrio entre necessidade de transparência e controle,de um lado, e confiança do outro (ou do mesmo lado…). Decerto as equipes de tais organizações tiveram de se ajustar em termos de agilidade nos processos, bem como inovando nos processos jurídicos, financeiros, de compliance, de comunicação etc.
Vale destacar que se evidencia no momento atual a importância do papel da sociedade civil organizada: em comunidades em que há lideranças, coletivos, movimentos e organizações sociais em diversidade e profusão de atuação, nota-se claramente a qualidade e a abrangência das ações emergenciais, bem como de acesso à mídia e a informações qualificadas, como na favela de Paraisópolis, na zona oeste de São Paulo. Em partes da imensa zona sul (por exemplo no Capão Redondo, onde há historicamente forte atuação da sociedade civil), repete-se o cenário. Por outro lado, em outras regiões da capital paulista, como na norte, a exemplo da Vila Brasilândia, bairro com maior número de mortes até 20/4, as iniciativas são esparsas e insuficientes.
Há de se ressaltar um ponto positivo e talvez inédito na história brasileira recente: do nosso mapeamento consta uma grande diversidade de movimentos, paradigmas e visões de mundo antes dissonantes, quando não “inimigos declarados”.
A maioria segue ainda sem se articular (mas já há boas exceções), porém todos se mostram dedicados a um fim comum e um grau de abertura para o diálogo ampliado. Para nós da ponteAponte, que temos como missão fortalecer o campo socioambiental com olhar estratégico e crítico, por meio de iniciativas de impacto social coletivo, a construção dessas pontes mostra-se uma oportunidade única e um ponto de otimismo em meio a tantos desafios que enfrentaremos coletivamente nos próximos meses e anos.
Acesse o relatório completo em https://drive.google.com/file/d/14eHc2LhhoGbAaZaf46Aa5fe3iGbeQUzl/view